O conteúdo está organizado em três seções de modo a proporcionar leituras independentes de cada uma delas. Na Seção 1, o leitor poderá conhecer detalhes de cada uma das nove experiências por meio de fichas técnicas; na Seção 2, são apresentados seis capítulos que problematizam os principais temas comuns a cada uma das experiências; e na Seção 3, encontram-se diálogos críticos com pensadores, pesquisadores, gestores e acadêmicos que trazem importantes dados e conclusões sobre políticas públicas urbanas e regionais, nacionais e internacionais. A finalidade é proporcionar uma leitura cujo percurso seja definido pelos próprios interesses do leitor, dada a diversidade de assuntos decorrente da dimensão continental brasileira.
Essas nove experiências vinculam-se a estudos históricos urbano-regionais; projetos de extensão; exercícios acadêmicos na área de ensino de urbanismo; assessorias e consultorias a órgãos públicos e entidades privadas; e processos participativos em conselhos municipais e com assentamentos precários. Elas ocorreram em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, microrregiões, zona de fronteira, cidades de portes pequeno, médio e grande, capitais estaduais, centros regionais, polos e metrópoles. Caracterizam-se por estudos sobre a expansão de infraestrutura urbana e regional, pelos conflitos fundiários e ambientais, pela precariedade habitacional, pela vulnerabilidade social e pelas contradições da gestão pública.
As principais inovações e contribuições de cada experiência foram agrupadas nos capítulos. Assim, os capítulos não têm autores, mas curadores responsáveis por uma reflexão introdutória sobre questões territoriais e por uma análise cruzada dessas experiências. Da análise cruzada, emergiram temas relacionados ao meio ambiente, à relação entre habitação e infraestrutura, aos novos paradigmas do planejamento urbano e regional, às críticas e desafios do desenho urbano, ao embate rural-urbano e aos instrumentos e sistemas de gestão pública.
O livro não se propõe a uma única conclusão, que pouco satisfaria a amplitude do debate que quer proporcionar. Portanto, optou-se por finalizá-lo com as interlocuções críticas de convidados que debateram os projetos e trouxeram algumas reflexões como: a necessidade de rever os conceitos e paradigmas do campo do urbanismo; romper as generalizações que acometem a formulação das políticas públicas, planos e instrumentos urbanísticos; observar a questão urbana e regional para além de uma racionalidade instrumental; compreender cada município pelas suas particularidades e; por fim, problematizar a institucionalidade do planejamento e do projeto.
Da variedade de pautas e contextos, destacam-se três abordagens que são estruturais na concepção do livro: a diversidade regional, que orienta decisões dos projetos; a interface universidade-sociedade, que proporciona soluções inovadoras; e o envolvimento de diferentes agentes, que reforça o aspecto democrático dessas experiências.
Transversalmente a essas abordagens, o tema da escala parece ser a característica predominante nas experiências. O atual processo de urbanização envolve diferentes níveis de gestão, governança e impactos recíprocos (local, metropolitano, regional, nacional, internacional, global). As respostas a essas reciprocidades, como poderão ser observadas nas experiências, são construídas pelo cruzamento de relações escalares institucionais, espaciais, administrativas, econômicas, técnicas e culturais. A escala, portanto, não é considerada como sinônimo de dimensão ou de tamanho, nem como uma variante cartográfica de formas de representação. Nessas abordagens, a escala é considerada como relação.
O histórico recente de debates sobre esse tema (Ramírez Velázquez, 2018) permite diferentes incursões de pontos relevantes sobre sua característica ontológica (Smith, 1984) ou construtivista (Swyngedouw, 2003), mas fundamentalmente de sua importância não como produto, mas como fator de análise, processo e produção do espaço. Sobretudo, diante dos reescalonamentos (Brenner, 2010) que foram evidentes na Europa, mas também reconhecidos no Sul Global.
Os reescalonamentos do Estado brasileiro e das formas de atuação do mercado têm sido acompanhados por novas estratégias de interferência no território (Klink; Souza, 2018) que são marcadas por transições teóricas e conceituais. E o debate global-local que predominou nos anos 1990 e 2000 (Brandão, 2012) frente às fortes evidências da globalização, do neoliberalismo e da financeirização da provisão de infraestrutura contribuíram, em certa medida, para minimizar a importância de outros âmbitos escalares cujos prejuízos refletiram-se no pensamento e também na prática da gestão administrativa ou do combate às desigualdades.
Concomitantemente, configuraram-se críticas às hierarquias compreendidas pelas noções escalares (Marston; Jones III; Woodward, 2005) frente aos novos espaços de redes e fluxos. Reconhecer essas nuances do debate reforça que – tal como na história e na crítica da questão escalar – não se pode generalizar as motivações ou os efeitos de ações que levam em conta a escala territorial. Assim, é difícil afirmar que, independentemente de suas dimensões, essas ações sigam uma única lógica de decisões. As influências não ocorrem exclusivamente da esfera internacional para a nacional ou da metropolitana para a local, por exemplo, como se houvesse um fluxo natural do maior para o menor, do mais forte para o mais fraco, ou do mais complexo para o mais simples. Essa seria uma visão estereotipada dos entes envolvidos. O que as experiências apresentadas neste livro confirmam é que existe um movimento menos monolítico, mais dicotômico e de influências cruzadas das tomadas de decisão, que leva em consideração os aspectos territoriais nas suas variadas escalas. E avançam a esse debate ao praticarem as interescalaridades.
Por isso, a interescalaridade na compreensão das experiências analisadas surge em diferentes momentos como método de trabalho que – não explicitamente enunciada ou concebida para essa finalidade – emerge como principal oportunidade de absorção da reestruturação territorial que marca o atual processo de urbanização brasileiro. Ou seja, a escala – ou a interescalaridade – não é um objeto em si dessas experiências, mas um caminho para alternativas à produção do espaço a partir do qual as experiências proporcionam inovações.
As questões escalares que se sobrepõem nas experiências são os elementos-chave para compreender, nas variadas abordagens, uma possível contribuição deste livro ao modo de ação do Estado, da iniciativa privada e da sociedade sobre o território. Diferentemente das práticas idealizadas pelos think tanks, as experiências evidenciam não apenas o produto final, mas também os conflitos e desafios que são comuns ao contexto brasileiro e latino-americano.
Com essa expectativa, os projetos não são apresentados como best practices, mas como soluções que possam colaborar para o debate e a construção de novos paradigmas urbanísticos, ao nos ensinar sobre os obstáculos históricos para suas implantações e, quando implantadas, de suas contradições. Os recursos investidos em infraestrutura e cidades novas na Amazônia não foram capazes de evitar ou sanar problemas básicos de moradia e saneamento como os verificados em Macapá (AP). Assentamentos precários em Pau dos Ferros (RN) ou Lagarto (SE) requerem tratamentos muito distintos daqueles encontrados em São José dos Campos (SP), muito embora a vulnerabilidade das comunidades envolvidas seja correspondente. Os planos diretores de Capão Bonito (SP) e de Natal (RN) têm pontos comuns, mas divergem em suas naturezas, em seus resultados e nas disputas que provocam no município. Os limites entre áreas urbanizadas e não urbanizadas são dissonantes quando tratadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte ou na Tríplice Fronteira, por exemplo.
Do quadro que se desenha com essas divergências e aprendizados é possível apontar uma agenda de pesquisas e ações que poderiam: instigar o planejamento territorial pela relação entre universidade e sociedade civil (gestores, comunidades, poder privado); reconhecer a exaustão do tecido urbano industrial como modelo de desenvolvimento urbano; propagar soluções articuladas ao meio ambiente; incorporar o aspecto regional no planejamento urbano e vice-versa; observar os sistemas regionais para as soluções locais; dialogar com os novos agentes urbanos; e, por fim, discutir a aplicação na íntegra dessas soluções.
Em comum, fica evidente a necessidade de posicionar o território como lugar de reflexão, decisão e ação. Colocar em prática essa agenda significa superar o anacronismo de planos baseados na reprodução indistinta de experiências estrangeiras; reverter a visão assistencialista e tecnocrática de programas de governo; e combater a prática clientelista, patrimonialista ou exclusivamente de mercado que proporciona privilégios assimétricos. As políticas públicas relacionadas ao ordenamento territorial não devem estar confinadas setorialmente, mas articuladas aos debates da economia, da infraestrutura, do meio ambiente, da saúde, da cultura e da educação. A peça-chave desse livro é, portanto, a apresentação do território como um dos elementos centrais do desenvolvimento nacional. Mais importante que uma conclusão, como dito antes, o que este livro traz é o propósito de reforçar o território como campo do saber e da prática.
Por isso é válido destacar que as discussões aqui apresentadas também devem muito aos debates coletivos proporcionados em eventos acadêmicos como o XVIII ENANPUR realizado em Natal (RN) (2019), o II CIHU realizado na cidade do México (2019), o XVI SHCU realizado em Salvador (BA) (2021), o VI ENANPARQ realizado em Brasília (DF) (2021), o XIX ENANPUR realizado em Blumenau (SC) (2022), o 1º Simpósio de Pesquisa em Planejamento e Projeto em Diferentes Escalas Territoriais (2020) e o Seminário Dilemas Contemporâneos das Escalas de Planejamento: Entre o Local, o Metropolitano e o Regional (2020), ambos ocorridos no IAU-USP, em São Carlos (SP).
Como as transformações desejadas não ocorrem isoladamente nem sem recursos materiais, o LEU agradece a colaboração dos seguintes grupos de pesquisa e/ou extensão: PExURB (IAU-USP), GPUR (UFERSA), TRAMA (UFMG), URBIS (IAU-USP). Agradece os recursos materiais e pessoal disponibilizados pelo IAU-USP, pela Comissão de Pesquisa (CPq-IAU-USP), pela Comissão de Cultura e Extensão (CCEx-IAU-USP), pelo Santander, pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, pelo Programa Associado UEM/UEL de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPU-UEM), pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU-UFMG). Agradece aos debatedores Eduardo Tadeu Pereira (FNP), Francisco Comaru (UFABC), João Ferrão (ULisboa), Marco Aurélio Costa (IPEA), Nabil Bonduki (FAU-USP), Roberto Luís Monte-Mór (FACE-UFMG), Sarah Feldman (IAU-USP) e à parceria de Anderson Romário Souza Silva (CELIS/UFERSA) e Eulália Portela Negrelos (IAU-USP) no Seminário Dilemas Contemporâneos das Escalas de Planejamento: Entre o Local, o Metropolitano e o Regional.
Por fim, agradece a todos(as) os(as) alunos(as) envolvidos(as), especialmente pelos trabalhos de coordenação dos eventos e transcrição dos debates feitos por Natália Jacomino, Caroline Brassi Scapol, Amanda Sayuri Kowara Santos, Eduardo Archetti Martins Arruda, Magnus Cunha Pellense, Natália Medeiros do Nascimento, Anna Karoline da Silva Santos e Sabrina Karen Almondes Mendonça.
Não foi tarefa fácil, mas a expectativa é que esse livro amplie os diálogos com agentes de diferentes origens institucionais, enraíze uma nova agenda nos debates sobre as cidades brasileiras e proporcione aprendizados pelas experiências urbanísticas.
BRANDÃO, C. (2012) Território e desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local e o global. Campinas, Editora da UNICAMP.
BRENNER, N. (2010) A globalização como reterritorialização: o reescalonamento da governança urbana na União Europeia. Cadernos Metrópole, 12 (24), 535-564.
KLINK, J.; SOUZA, M. B. (2018) De uma economia política das escalas espaciais a uma agenda renovada para os estudos críticos espaciais. In Brandão, C. A. et al. Escalas espaciais, reescalonamento e estatalidades: lições e desafios para América Latina. Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Metrópoles.
MARSTON, S. A. et al. (2005) Human geography without scales. Transactions of the Institute of British Geographers, 30 (4), 416-432.
RAMÍREZ VELÁZQUEZ, B. R. (2018) Do debate sobre as escalas à apologia localista na América Latina. In Brandão, C. A. et al. Escalas espaciais, reescalonamento e estatalidades: lições e desafios para América Latina. Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Metrópoles.
SMITH, N. (1984) Desenvolvimento desigual: natureza, capital e produção do espaço. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
SWYNGEDOUW, E. (2003) Scaled geographies: nature, place and the politics of scale. In Sheppard, E.; Mcmaster, R. B. Scale and geographic inquiry: nature, society and method. London, Blackwell.